quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

O outro conto da antologia

Passos pesados

Alta madrugada. A pensão inteira é sacudida pelo estrondo de passos firmes, sólidos, que galgam a velha escadaria de madeira. O prédio é ainda mais antigo do que ela, e ao contrário da mesma, nunca havia sido reformado. No interior de seu quarto, no terceiro andar, Inácio abre os olhos, assustado. Como o corredor da pensão é comprido, não consegue ainda identificar se é em sua direção que vêm as pernas causadoras de tamanho barulho. Na verdade, não é capaz nem mesmo de discernir se está acordado ou se tudo não passa de mais um dos sonhos aterrorizantes aos quais já está acostumado. Ou, melhor dizendo, resignado.
Não tem uma noção nem aproximada de quantos pesadelos já teria tido nas últimas três décadas, e eram quase sempre iguais. Ouvia nitidamente um rumor muito alto de botas, conseguia enxergar partes de farda verde-oliva e depois alguns flashbacks envolvendo pau-de-arara, choques elétricos nos testículos, afogamentos em barris e estados de semiconsciência e prostração no fundo de alguma cela úmida e decrépita, tendo ratos apiedados como companhia. Jamais conseguira, em nenhum destes sonhos, enxergar a face de seus algozes. Sabia perfeitamente que lutar contra um inimigo assim, desconhecido, é praticamente impossível. Inácio se contentaria, porém, em não mais ter estes sonhos, já que lhe era impossível apagar seu passado. Já havia experimentado vários tratamentos, incluindo algumas internações, mas não via muito resultado. Buscando fugir de tudo isso, passara, há muitos anos, a usar drogas, fazendo-o com maior frequência na proporção e intensidade em que tinha tais sonhos.
O barulho dos passos é cada vez mais próximo, e parece ser produzido por seis ou oito pernas. Inácio, atônito em sua cama, parece não ser o único a ter medo, pois a pensão possuía algumas dezenas de hóspedes, e não se ouvia mais nenhum barulho a não ser o dos passos descompassados. Nenhum abrir de portas, nenhum grito, como se todos fingissem ausência – quem sabe estivessem rezando para os invasores entrarem no quarto vizinho... Isso reforçava os pensamentos de Inácio – “deve ser mais um sonho; impossível ninguém reagir, ninguém fazer nada”.
Sentia-se encharcado de suor, e o máximo que conseguiu fazer, a muito custo, foi olhar para a janela, na esperança de já estar amanhecendo e o despertador lhe salvar de tal pesadelo. Embora faltassem algumas ripas de madeira na janela de seu quarto, não enxergou sequer um fio de claridade que lhe permitisse um suspiro de alívio. Noite alta, fechada ainda, como as longas trevas daqueles anos difíceis. Não poderia contar com a aurora para lhe salvar.
Sentia os passos mais fortes, até poder certificar-se, a contragosto, de ser mesmo ele o alvo. Sem muita possibilidade de reação (não conseguia sequer mexer-se na cama, como se estivesse amarrado, dopado ou tetraplégico), desejou profundamente que fossem ladrões. “Entrem logo, levem o que desejarem, mas me deixem em paz, me deixem ao menos dormir”, pensava, buscando um consolo.
Tentava enganar a si mesmo, pois não imaginava ladrões fazendo tanto barulho. Ainda assim, preferia acreditar nisso, em vez precisar se deparar com a hipótese de enfrentar militares novamente.
Subitamente, e por algumas frações de segundo, o estrondo dos passos foi interrompido, quando atingia seu auge. “Ou acordei, ou vem coisa pior...”, pensou Inácio, até sua dúvida ser esclarecida pelo baque violento e seco que levou a porta de seu quarto ao chão. Junto com os invasores entrava um fio de penumbra, permitindo visualizar de fato quatro corpos desalinhados. Apenas uma voz grave, porém, foi ouvida:

– E o meu dinheiro, Mané? Teu prazo acabou...

“Ufa” – suspirou Inácio, suando ainda, mas agora aliviado ao ver que era seu fornecedor de drogas. Até nem lembrou se tinha dinheiro, mas conseguiu sorrir...

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