domingo, 20 de dezembro de 2009

Basta!

Dias corridos, como de costume, mas já em reta final!
Como prometi há algumas semanas, começo a publicar aqui os meus contos da antologia que autografei na 55ª Feira do livro. Um pouco antes até do que havia prometido, é verdade. Quem não pôde ir e não tem o livro, divirta-se! E comente à vontade, já ouvi várias opiniões, mas nunca é demais, principalmente para quem está começando no ramo!


Basta!

Ironia pura! Gilberto poderia inventar mil e uma explicações para o fato de ter lido a carta de Tânia justamente após cruzar com o Antônio na estrada, indo em sentido contrário. Como não acredita em explicações sobrenaturais, crê ser coincidência mesmo.

Para mim chega. Agüentei tudo o que podia, ou até mais. Basta! Resolvi pensar um pouco em mim agora, chega de sofrimento. Nos primeiros tempos até me virava e ia tocando as coisas, mas de uns anos para cá não vejo mais de onde tirar forças. Nem motivo. Suportaria (como o fiz até hoje) tuas longas ausências sem problema. Não sou ingrata, sei reconhecer tua preocupação e dedicação, pois é para podermos ter um futuro mais tranquilo, que passas tanto tempo viajando. Sei de todos os riscos, as estradas cada vez ficam mais perigosas, já perdemos alguns amigos e tu, colegas queridos de profissão... Só eu sei quantos dias e noites rezei e implorei para chegares a salvo e bem, e – graças a Deus – sempre adiantou.”

“Até nossos filhos consegui acalmar durante estes anos todos em que os criei, bem dizer, sozinha. Conseguirás lembrar quantas vezes perguntaste pelas crianças? Como estavam de saúde, ou se tinham aprendido algo novo? Alguma vez lembraste dos estudos deles? Sabes que os dois já acabaram o segundo grau e estão fazendo bicos por aí, de mecânica, pintura, elétrica e o que mais surgir?

Gilberto conhece o Antônio há bem uns dez anos, e sua fama há mais tempo. Mais grosso que ele, teimoso, brigão e violento, e tudo isso quando está bem, sem tomar nada. Quando bebe, então... Bom amigo, sincero e quase sempre leal, mas não dá para confiar totalmente. Basta tomar o primeiro copo e pronto: ele se transforma. Briga, bate boca e, quando não resolve o problema no diálogo, parte para a agressão. Se tiver algo à mão, não faz cerimônia em usar. Suas inúmeras vítimas podem confirmar.

Quanto a mim, nunca gostei de ficar tanto tempo sozinha, bem sabes, mas o problema não era a tua ausência. A tua volta é que me incomodava, com perfumes femininos baratos nas tuas roupas. Ainda por cima eu acabava lavando. Brigava, enlouquecia de ódio, mas lavava. Me juravas ter sido um lapso, prometias se controlar, para não voltar a acontecer, dizias que iria entrar na linha e tudo mais. Sempre em vão. Na viagem seguinte, tudo se repetia. E na próxima também. Não achas suficiente para uma esposa dedicada como eu suportar? Tu terias aguentado uma vezinha apenas, se fosse o contrário? Sabe lá quantas vadias já passaram pela tua boléia. E, com elas, quantas doenças? Nem quero pensar no pior... E espero que tenham sido só desconhecidas mesmo, para não precisar conviver com a vergonha de ter dividido meu marido com alguma amiga. Mas também, agora nada mais importa.

Gilberto jamais admitiria, mas parecia estar emocionado ao ler essas palavras. Tânia tinha mais estudo que ele, e sabia colocá-las bem. Quando chegou em casa e encontrou apenas este papel dobrado em cima da mesa, com a letra arredondada de sua esposa, percebeu logo o tamanho da encrenca. Não concordou nem discordou do desabafo da esposa. Apenas tomou mais um gole de pinga, estalando os beiços e enxugando o bigode com a palma calejada da mesma mão que encheu novamente o copo. E continuou a leitura:

Como sempre chegas com fome, deixei esta carta na mesa da cozinha. Mas se fores no quarto (agora é só teu, ou de quem mais quiseres), verás que já retirei a maior parte das minhas poucas coisas e a esta hora provavelmente estarei longe daqui. Se tudo der certo, devo estar de carona com o Antônio, pois ele passa por aqui sábado sim, sábado não, em direção ao sul, como bem sabes. Tão logo chegue na minha mãe, ligo para nossos filhos; sei que eles me entenderão. Não me darão razão, pois são machistas como tu, mas compreenderão o meu lado.

Boa sorte, dá à tua vida o rumo que desejares (conselho inútil, sempre fizeste isto). Se não entender alguma coisa, pede para uma das tuas vadias te explicar, ou, sei lá, desenhar. Até.

“Logo com o Antônio”, ainda pensou Gilberto. Tomou vagarosamente o resto da garrafa de pinga bem instalado em sua cadeira de balanço em frente à casa. Via passar muitos carros e caminhões pela beira da estrada, e, vez ou outra, acenava para algum colega que buzinava. Tudo sem muito entusiasmo. Entre um gole e outro de cachaça apenas se limitava a balbuciar, com um misto de ironia e melancolia:

– Logo com o Antônio...

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