sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Continho!

Para iniciar, aí vai um conto meu, que já havia caído na grande rede mesmo...


Baby

Jaime era um cara comum. Nada havia nele que chamasse tanto a atenção dos menos observadores. E, como toda pessoa comum, possuía também suas excentricidades. Bastava conhecer alguém e já se apresentava: “Jaime, mas pode me chamar de James, é como o pessoal me chama”. Nunca vi ninguém chamá-lo assim, mas ele não desistia. Fã de James Coburn, não perdia um filme de faroeste. Provavelmente já havia assistido a todos, e mais de uma vez, mas não cansava.
Outra excentricidade sua era uma recente fixação pela palavra “baby”. Tentava usá-la a todo custo, na maioria das vezes sem propósito algum. Acabava ficando meio artificial, fora de contexto, forçada mesmo. Ele com certeza sentia os olhares de reprovação. Mas não desistia.
Tão logo pôde, juntou quase todas as suas economias para ir ao velho oeste buscar uma inspiração. Precisava falar “baby” para sentir-se bem. Com um pouco de sorte, encontrando as oportunidades certas, passaria alguns dias usando a tão sonhada palavra. Aí sim, voltaria com as energias recarregadas e de bem consigo mesmo. Sua auto-estima precisava disso. É verdade, o cenário não é lá o mais apropriado; talvez fosse melhor uma coisa mais rock’n roll, meio anos 60, 70, mas indo para o velho oeste Jaime realizaria também um sonho de criança.
A primeira coisa que fez, sem querer, foi esbarrar em um sujeito, gordo e grisalho. Mal-encarado, não aceitou o humilde pedido de desculpas de Jaime (ops, agora sim parece mais apropriado o “James”). O sujeito não quis nem ouvir os pretextos do rapaz, desacostumado com botas de couro, pois era a primeira vez que usava e ainda não caminhava com muita firmeza. Ainda debochou, perguntando se com tamancos ele estava acostumado. Andar sem muita firmeza no velho oeste pode ser perigoso, senão para a vida, ao menos para a reputação. Mas James não se deixou abater. Fingiu não ouvir a ironia e continuou a caminhada, ainda ouvindo os resmungos do homem. Talvez o Gordo nem estivesse de mau-humor, mas o velho oeste é assim mesmo: rudeza e grosseria são algumas das poucas leis aqui. Sem falar no cheiro ruim de tudo e de todos; banho não é bem uma prioridade por tais bandas.
Como era uma pessoa de paz, achou mais conveniente deixar o coldre com o revólver no quarto da pensão. Pretendia sair para dar uma volta, conhecer o lugar e tentar não arrumar problemas. Não poderia chegar matando. Sabe-se lá qual tipo de gente poderia encontrar pelo caminho. Ou o que mais poderia acontecer. Saindo da pensão, passou pelos Correios e Telégrafos e pela estação de trem, onde aproveitou para pegar um jornal do dia. Guardou-o embaixo do sovaco para ler depois.
Ia caminhando a passos tranqüilos, sem pressa. Vez ou outra escarrava para o lado, enquanto se aproximava do saloon. Empurrou as portinholas, avançou um pouco, ajeitou o chapéu e olhou para os lados, o olhar decidido e sério. O lugar era exatamente como ele sempre imaginou, ou como via nos filmes: enfumaçado, um pouco escuro (apesar de ser dia) e com um agradável som de piano ao fundo, ainda mais para quem não é tão exigente em termos musicais. Sorriu então com o canto da boca e ocupou uma mesa próxima à janela, pedindo em voz alta “um whisky, sem gelo”. Depois de tirar o chapéu começou a enrolar um palheiro, acendendo-o com o fósforo do dono da espelunca, quando este trouxe a bebida. No velho oeste não tem ainda essa história de “proibido fumar”. Também, se tivesse, o saloon ficaria entregue às moscas.
Tomou de um gole o whisky e ergueu o copo em direção ao balcão, pedindo outro. Abriu o jornal em cima da mesa e começou a ler, mais interessado no pôquer da mesa ao lado. Eram quatro os jogadores, mas só conseguia enxergar as cartas de dois deles, o de costas para ele e o de lado. Conseguiu ver o quanto blefavam, a não mais poder. Um sujeito obeso, que não reconheceu de imediato, pois estava de costas para ele, possuía apenas uma trinca de oitos, e o outro blefava com um ridículo parzinho de damas. Falavam alto e batiam na mesa, abafando o som de “Oh, Susana” que saía com sofreguidão do piano. Bebiam, enquanto isso, na mesma proporção dos blefes.
Dois whiskies e umas seis partidas depois, James se convidou para jogar, tendo de pagar cem dólares para entrar no jogo, e ainda ouvir os deboches do Gordo, já devidamente reconhecido. Ainda disse que “ali só jogavam homens, mas eles podiam abrir uma exceção para o forasteiro – é sempre bom tirar dinheiro de um otário”. A resposta foi instantânea:
– Já deve ter perdido bastante, então, não é?
O sujeito bateu na mesa e, levantando-se, quase encostou o nariz no de James para resmungar “não esqueci do encontrão horas atrás, palhaço…”
– E não vai esquecer também da surra nas cartas que vai levar agora.
Contido pelos outros, o Gordo sentou em seu lugar e a jogatina reiniciou. O pianista desistiu de tentar tocar e foi assistir ao jogo, assim como a puta que estava encostada (quase deitada) até então no piano. Ambiente mais silencioso, James sentou-se então com outra dose de whisky à mão. O dono da espelunca também postou-se em volta da mesa, com seu pano já meio marrom no ombro.
Após perder uma, duas e três partidas, começou a ganhar, uma atrás da outra. O Gordo e um outro, de cabelo enferrujado, levantaram-se de um golpe da cadeira, derrubando-a ao chão e insultando o vencedor. O sujeito propôs um duelo, mas James, em vão, tentou recusar. Não estava para briga, e sequer tinha o revólver consigo, mas de nada adiantaram seus argumentos. Estavam todos já na rua, em frente ao saloon, arrastados no burburinho causado pela notícia do duelo. Toda a freguesia do saloon foi correndo para lá também, e a puta do piano correu em direção ao James, pegou-o pelo braço e desejou boa sorte. Afirmou torcer por ele e prometeu um prêmio se conseguisse escapar vivo. Nisso ele já estava cara a cara com o rival, e conseguiu a muito custo convencê-lo a deixar buscar sua arma na pensão, apesar de mais de trinta homens terem oferecido as suas.
Correu então para lá e subiu aos tropeções os dois lances de escadas. “Droga, não dá nem para chamar esse sujeito de baby, senão a coisa piora”, ainda pensou. Lá chegando, colocou o coldre na cintura com o revólver já todo carregado, mesmo sabendo que não daria mais de um tiro. Com muita sorte conseguiria atirar uma única vez. Se disparasse, teria boas chances de acertar, dado o tamanho do alvo. Pensava nisso apenas para se acalmar, pois não possuía muita experiência com armas.
Desceu as escadas devagar, como quem está indo fazer algo contrariado. Ouvia ainda dezenas de vozes misturando-se na rua. Foi andando em direção ao Gordo, sempre encarando-o com o olhar fixo, sem desviar nem ao cuspir para o lado. O gosto do palheiro ainda estava forte na garganta, já seca. Depois de parar a poucos centímetros da cara do rival – apenas a distância da aba dos chapéus – a puta do piano veio fazer as honras do duelo. Virou-os de costas um para o outro e James sentiu de novo a maciez do seu toque e a esperança em seu olhar. Começou a contar lentamente os passos: um… dois… Fez-se o silêncio no povoado. E o sol escaldante refletia nas vidraças do saloon.
Cinco… seis…. calor infame, roupa de couro pesa - pensou.
Nove… dez… um giro rápido para trás, um estampido e o barulho de um corpo se estatelando no solo poeirento. Ainda teve tempo de achar insuportável o gosto de sangue misturado ao do palheiro. Deveria ter tomado mais whiskies. Ainda pôde sentir a maciez da mão da puta uma vez mais, enquanto ela segurava e repousava a cabeça em seu colo, acariciando-a como uma mãe faria a um filho. Ouviu-a ainda protestar, dizendo que ele não precisava ter feito aquilo, “não tinha necessidade” e outras coisas mais. James ia ouvindo cada vez menos, como se a voz dela estivesse sumindo. Quando sentiu que não ouvia mais nada e a vista escurecia, ainda teve forças e calma para dizer, com um leve sorriso nos lábios:
– No velho oeste é assim. Baby.

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